PAÍS
- Publicado em 11.03.2022
Um projecto de reindustrialização burguês
O thatcherismo, a partir de meados dos anos 70 do século passado, deu a estocada final na hegemonia do sindicalismo economista (em alusão à categoria leninista) europeu e marcou o início da forte desindustrialização da economia do velho continente. Os capitais europeus encontraram força de trabalho disciplinada e baixíssimos salários sobretudo na Ásia, com o contributo determinante da China denguista.
A burguesia europeia usufruiu, com ênfase nas últimas três décadas, de um capitalismo globalizado e globalizante, em que o neocolonialismo deu, em certa medida, lugar a um imperialismo financeirizado. Isto permitiu aos capitais europeus, respaldados pelo belicismo do aliado estadunidense, no seu conjunto conformando o bloco ocidental da NATO, extrair superlucros da exploração dos recursos e da força de trabalho (produtiva e reprodutiva) no contexto do terceiro mundo/Sul Global, “com exércitos débeis e fraquíssimo investimento em meios de guerra”.
As tensões recentes, às portas da Europa ocidental, entre a NATO e a Rússia, de que é palco a Ucrânia, implicam alterações profundas no paradigma de desenvolvimento que os governos burgueses do nosso continente vêm seguindo. A dependência energética e de importações dos sectores primário e secundário face ao eixo de leste – China, Rússia, Irão – assim como a “tíbia capacidade militar, nomeadamente da Alemanha”, implica que a guerra económica, travada através da aplicação de sanções e embargos, gere escassez de mercadorias e inflação, que põem em risco a estabilidade social dos Estados capitalistas ocidentais e afectam a sua capacidade de agressão marcial e intervenção em conflitos como a actual invasão russa da Ucrânia.
Não é, pois, de espantar que a discussão da necessidade de reindustrialização do nosso continente e do aumento importante das rubricas orçamentais ligadas à defesa esteja na ordem do dia e mereça destaque mediático e considerações entusiásticas por parte das elites governamentais-burguesas europeias.
É conhecida a divisão do trabalho fomentada pelo eixo franco-alemão no contexto da UE, o que implica uma desigualdade acentuada dos níveis de desindustrialização entre os países periféricos e os do centro e norte. Ainda assim, a transição generalizada para uma economia terciária é factual e indiscutível.
Em Portugal o último processo de reindustrialização foi levado a cabo pelo Estado fascista, entre os anos 50 e 70 do século passado. O seu sucesso relativo foi obtido por conta da repressão da força de trabalho, da ilegalização e restrição violenta de qualquer actividade sindical ou para-sindical não enquadrada pelo regime corporativo, com vista à manutenção da precariedade laboral no campo, na pesca e na estiva e de salários miseráveis. Em contexto capitalista a extracção da mais-valia, que depende do volume de trabalho não pago, estabelecendo, portanto, relação de proporcionalidade inversa com o salário, ditava que assim seria, necessariamente. O aumento do capital fixo (que conduz potencialmente ao aumento da produtividade) pode permitir o aumento dos salários em condições de vantagem relativa para os trabalhadores (como sejam a escassez de força de trabalho e/ou uma organização sindical vigorosa, ou até mesmo a necessidade de assegurar a estabilidade social nas metrópoles imperialistas), salvaguardando ainda a massa de mais-valia extraída pela burguesia, ainda que à custa de uma diminuição da taxa de lucro. Tendo, no entanto, por instrumento um Estado fascista, repressivo, terrorista e colonial, a burguesia nacional e internacional não necessitava de recorrer ao aumento do capital fixo para garantir fartos lucros.
No contexto actual, no nosso país, os capitais que eventualmente sejam alocados a uma reindustrialização provirão do BCE, intermediados pela banca, pelas instituições europeias e pelo Estado (através dos programas de fomento do empreendedorismo, inovação, capitalização das empresas e quejandos), e tendo em conta tanto a inflação galopante como o carácter subordinado de Portugal no quadro da agremiação imperialista UE, o dinheiro disponível será relativamente escasso e para fins predeterminados, em função da já citada divisão europeia do trabalho promovida pela Alemanha, França, Holanda, Escandinávia e restantes parceiros ricos.
Assim, reindustrializar em contexto capitalista irá ser sinónimo de empobrecer para os trabalhadores em Portugal. Inflação, desvalorização salarial promotora de condições propícias à reindustrialização, destruição do serviço nacional de saúde, da escola pública e da segurança social por forma a alocar recursos à remilitarização e rearmamento – será este o cenário que o proletariado terá que enfrentar se se mantiver desorganizado.
Este devir não se apresenta, no entanto, estéril de oportunidades progressistas.
O ressurgimento da indústria poderá abrandar a dispersão da força de trabalho, que dificulta o desenvolvimento de tácticas e processos de luta laboral eficazes. Um sindicalismo proletário, combativo, progressista e revolucionário poderá impor-se como ferramenta contra os ditames capitalistas e imperialistas. A concentração de numerosos operários industriais facilitará a imposição de uma gestão democrática das empresas, com a criação de comissões de trabalhadores hegemonizadas por sectores proletários. Perante as condições objectivas adequadas os comunistas devem actuar por forma a materializar estas possibilidades. Poderão os trabalhadores, representados no plano político, sindical, associativo, pelas suas organizações de classe, proletárias, exigir uma reindustrialização que se paute pelo suprimento das necessidades materiais da população em Portugal, pela independência face à cadeia internacional do mercado capitalista, considerando ainda o imperativo ambiental e ecológico premente e repudiando qualquer belicismo imperialista? Tal exigirá alterações revolucionárias da base económica, do modo de produção e da superestrutura sociopolítica. Cabe ao proletariado e aos comunistas concretizá-las.
11Mar2022
JC