Ensaio
- Publicado em 10.12.2020
A vida de um cantoneiro em Portugal!
Este artigo demorou a ser publicado, porque o capitalismo resolveu novamente fazer das suas! O nosso camarada/correspondente do Norte, e entrevistado neste artigo, esteve num total estado de estagnação, marasmo e inquietação, aguardando uma resposta que teimou em se assumir, relativamente à recepção de uma inesperada carta de despedimento que um dos fantoches do patrão, um chefe de esquina, cobarde e arquétipo de engenheiro desnecessário, inútil, mesquinho e rato, lhe fez chegar por terceiros às suas mãos gastas e doridas da força do trabalho, que é a única coisa que lhe resta.
Isto não são palavras para florear, são palavras e adjectivos reais… … … que precisamos tomar consciência de uma vez por todas. E não engolir somente as notícias que nos obrigam a ler de um punhado de empresários neo burgueses, que se queixam porque têm que despedir trabalhadores dos seus famigerados restaurantes famintos de mais sucesso. O que vem a ser esta merda?! E as notícias reais?! De um país real?! Das pessoas que efectivamente levaram e levam o país para a frente! Que aguentam o barco da dívida! Dos milhares de trabalhadores que vivem em condições miseráveis? Dos milhares de desempregados que não têm acesso a um trabalho digno? Dos micro empresários que estão em ruptura, estão na falência, e não têm tempo para greves de fome nem manifestações de pacotilha?!
Dos oportunistas que pisam a torto e a direito por uma ninharia, contra os que ganham uma bagatela?
Há duas semanas reuni-me com o nosso recente camarada, e pude perceber como vive, neste caso, vivia, um cantoneiro em Portugal.
Benjamin- Como corre o trabalho?
Paulo- Lá ia correndo, mas recebi ontem uma carta de despedimento... houve má informação, o chefe quis aproveitar-se da situação porque subiu; e da sua nova posição… e nem deu a cara… Agora tudo ficou ainda pior. Mas ainda não sei de nada, tenho esperança que dê para ficar…
B- Calma, explica isso melhor.
P- Ontem, entregaram-me, a mando do chefe, uma carta de despedimento. Não percebi porquê. Sempre fiz um bom trabalho, e ainda no outro dia meteram 75 pessoas! No papel, na carta, dizem não precisar mais de mim, mas é mentira porque estão a meter gente. Sempre tive consideração pelo engenheiro, que sempre foi simpático, quando entrei para a empresa. Demonstraram curiosidade. Por isso quero falar com ele. Merece o meu respeito. Eles vão ter que dar a cara, amanhã.
B- Mas quem despede? Como funciona o contrato? O que aconteceu ao certo?
P- Quem despede é o engenheiro, mas o chefe é que reporta as coisas que acontecem. E deu má informação.
O trabalho nunca é renovado, é temporário. Já me tentaram transferir para outro posto e isso também não é fácil. Neste momento estou a viver numa residencial, com umas condições péssimas, tenho um quarto só com uma cama, pago 325 euros, mais de metade do meu salário.
O novo chefe, que está lá agora, assumiu funções porque o outro foi para casa por causa do covid. Este novo era uma pessoa como eu, há três meses atrás. Tomou-me de ponta e pensa que manda. Mas ninguém lhe tem respeito; dá ordens e quer coisas feitas sem nexo nenhum. Por exemplo: tás no início da rua e o contentor do lixo está lá atrás, se tens dez sacos para transportar imagina o tempo que demoras a ir e vir, depois não consegues, não te sobra tempo para o resto das ruas. Então o chefe passa a responsabilidade para mim e informa que eu não acabei o cantão.
Não vou assumir certas coisas que ele quer que eu assuma, não sou pago para isso. Sem ordens superiores não o faço e ele quer obrigar-me a levar os sacos.
Depois houve outra situação: um mal-entendido, em que nem quiseram ouvir a minha posição. Eu estava na rua, com uma passadeira e nessa rua tens um bico para outra rua sem visibilidade, o passeio faz um L. Não consegues ouvir nem ver as pessoas que vêm e, sem querer, mandei folhas para duas senhoras. Parei e pedi desculpa, mas elas começaram a resmungar, nem me deixavam falar e obrigaram-me a colocar a máscara, mas eu estava de viseira. E senti-me inferiorizado por estarem a falar para mim do outro lado do passeio; só pediam para me afastar e fizeram queixa ao meu chefe.
Recebi a carta de despedimento através de um colega, liguei imediatamente ao chefe várias vezes, mas ele não atendeu; depois liguei do número de um colega e ele atendeu; começou aos berros mal se apercebeu que era eu, a dizer que não era obrigado a atender. Perguntei o que significava a carta e ele disse: não sabes ler? Eu disse que sabia, mas pode explicar? e ele repetiu não sabes ler? Eu disse: ajude-me a perceber e ele respondeu: é do teu mau comportamento. Eu achei aquilo um mal-entendido e senti-me sem saber o que fazer mas com esperança de que falando com o engenheiro as coisas se resolvessem.
B- Como é a vida de um cantoneiro em Portugal?
P- É complicado. É preciso ter gosto e orgulho. Há milhares de pessoas que não dão valor ao trabalho que nós fazemos e algumas pessoas não têm respeito por nós. Outras falam connosco como se nós estivéssemos ao mando delas, - oh Quim não limpas aqui?
Outras pessoas da câmara acham-se superiores a nós só por conhecer os nossos chefes que podem achar ou mandar também como eles. Um da câmara diz: olha vou ligar para o “sr. ...” a ver se não fazes já, ou seja, ameaçam. Abusam sobre isso. Nós naquela farda sentimo-nos inferiorizados como cidadãos.
B- Como é a gestão das horas? E o salário? E a empresa?
P- As horas são normais, mas começo muito cedo, às seis, mas é hábito.
O salário é fraco, mas o pior é a falta de consideração pelos trabalhadores por parte da empresa. O salário é o que há, tem que ser não se pode reclamar, mas podia ser mais.
As condições da empresa são más, é trabalho temporário, não há contrato e ganho 660 euros com subsídio de alimentação, com descontos ganho quinhentos e tal. Trabalho sete horas, mas na prática trabalho sempre mais. Trabalho domingos e só tenho folga ao sábado e nunca querem as pagar horas extras que devem pagar. É uma empresa privada contratada pela câmara. Chama se RECOLTE, com sede na Maia, Porto. Dão fardamento mas não dão mais nada. Se nos baterem não há defesa nem seguro; se alguém nos faltar ao respeito a empresa não faz nada. Acho que é um trabalho muito cansativo para pessoas com mais idade. Neste momento, não nos deixam vestir nem temos onde o fazer mas tínhamos um balneário pequeno para a quantidade de pessoal que era.
Por vezes, o fardamento e as botas demoram a vir, se tivermos que andar rotos andamos, não querem saber. Já fiquei doente porque tinha as botas furadas e fiquei com os pés molhados. Andei duas semanas uma vez com as calças rasgadas quando subia para o camião, andei de calções por dentro para não ter frio. As pessoas não nos dão valor, vêem-nos sujos e, pela nossa aparência, desprezam-nos.
Agora deixaram de investir na formação, dos novos e dos antigos, o que dificulta certas tarefas. Falta regime, falta respeito por nós.
A responsabilidade é dos chefes; o engenheiro não quer saber, só o que lhe dizem. As queixas chegam-lhe pela voz dos chefes.
Gostava de fazer algo melhor, mas a necessidade levou me até aqui.
Há dois dias falei com o camarada e foi despedido. Não trouxe nada. O engenheiro nem o quis ouvir, disseram-lhe que não valia a pena. Mesmo tendo apresentado uma folha com vários testemunhos de colegas a defendê-lo sobre o sucedido, foi completamente ignorado. Estava prestes a fazer 4 anos ao serviço da empresa e como em tantos outros casos, há que arranjar pretextos para não tornar o trabalhador efectivo. Nem um tostão de indemnização trouxe.
Prezado leitor,
O que temos aqui? Alguém tem dúvidas? Apelo à reflexão e darei um pequeno contributo com a minha perspectiva da situação.
Sem aprofundar muito, porque está na hora de levantar o cu do sofá e perceber que comprar um carro às prestações é para suprimir frustrações que o próprio sistema impele.
Ora vejamos, temos aqui várias situações. Temos um trabalhador humilde, com alguma consciência de classe. Com uma posição firme e determinada dos seus direitos, honesto mas com noção do perigo do capitalismo. Empenhado e sem medo, mesmo sendo refém, vítima e subordinado de um sistema hierárquico completamente injusto, contraditório e oportunista. Limita-se a trabalhar, a comer e a dormir. Vive em condições deploráveis. Mas ninguém quer saber disso.
Temos um chefe de tuta e meia, altivo e arrogante, fruto das novas funções que foi incumbido. Em breve vem ele “para a rua“, e vai desejar nunca ter saído dela. Mais um passageiro utilizado como farrapo do engenheiro.
Temos um engenheiro que é o que é na verdade: um brutamontes, um simplório intelectual, um bronco de tigela cheia, um vómito execrável que se reclina na cadeira e vê a caravana passar, quando ele nem a cavalo chega de tão burro ser. Está-se marimbando como tantos outros, recebe bem ao fim do mês e o resto que se foda, não se preocupa tão pouco com o lixo que o rodeia. Quando ele nem para caixote serve. Mas está lá porquê exactamente? O que o habilita a exercer funções que não aplica nem alguma vez conheceu de perto? Ah, foram os estudos. Isso distingue o resto? Claro que não! “Arranja mais ruas para nós limparmos”. Bravo, sr. Engenheiro!
Temos várias empresas de trabalho temporário que canalizam os trabalhadores para os mais variados sectores laborais, numa primeira fase são essas empresas que manobram o esquema, passando depois para as empresas que lidam directamente com o trabalhador. Estas empresas são ameaças para os trabalhadores! São um dos cancros do capitalismo!
Depois temos as câmaras a contratar as empresas privadas dos amigos, temos concursos fictícios e temos lobbies em espiral para favorecer sempre os mesmos.
Numa sociedade sem classes não haveria esta disparidade, nem chefes nem engenheiros, nem compadrios nem câmaras. Havia trabalhadores! O engenheiro não faz metade do que faz o cantoneiro e ganha cinco vezes mais?! O que é esta merda?! E quem não pode estudar porque só tem dinheiro para comer e dormir?! E as televisões falam disso?! O tanas! Falam de heróis de araque quando lhes convém! Quando os heróis passarem ao ataque eu vou-me rir, e claro, arregaçar as mangas e juntar-me a eles! Para derrubar esta corja de rebotalhos e instaurar o modo de produção comunista!
O varredor
Trabalha noites inteiras
o Almeida Varredor
enxotando a varejeira
pelas ruas ao rigor.
Perguntei-lhe a começar
pela vida e ele disse:
“(…)Eu danço quando ouço cantar
Afina a corda, ó tocador
Que eu vou-me pôr a contar
a vida dum varredor.
Tudo se passa e resume
entre um esgoto que arrota,
o cheirete e o azedume sem sabor
desta vida que se enxota,
e Portugal tem o costume.
E varre, varre senhor varredor,
pois com o teu varrer
assim faz outro mundo
Portugal tem o costume
de viver com dois extremos
os que lucram com o estrume
do lixo em que nós vivemos.
Também nos caixotes de lixo
tem o País seu retrato
ao lixo atira o rico e muito mais
o que lhe ofende o olfacto –
para o pobre é mata-bicho.
Para o pobre é mata-bicho
o que à fome vai sobrando
mas faz das sobras do rico
o bicho que vai matando.
Não tem a cara lavada
quem vive desta sujeira
que é ver gente governada assim,
por outra viver da lixeira,
e ser Almeida sem mais nada.”
E varre, varre senhor varredor,
pois com o teu varrer
assim faz outro mundo
Disse então a despedir-me
“muita coisa há p’ra varrer”
Respondeu-me “uma das coisas é
Quem nos faz apoderecer;
Neste trabalho braçal
de tudo varre o varredor :
gato morto e um aborto semanal
o que nos falta em rigor, sim senhor,
é varrer o capital.”
(Fausto)
10Dez2020
Benjamin
Paulo Fernandes