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PAÍS

O Naufrágio da Motora Arcanzil e as Lições do Caso
Publicado em 26.07.2015 

arcanzil mini 01Começou por ser nome de pedra – a Pedra do Arcanzil – perto do Cabo Espichel, na Ponta da Pombeira, restos da serra da Arrábida deixados no Atlântico, e passou, em 3 de Novembro de 1988, a nomear também uma embarcação de pesca artesanal – a motora Arcanzil – construída de madeira, catorze metros de comprimento e dezassete toneladas de arqueação bruta, registada na capitania de Sesimbra com a matrícula SB-1136-C, que naufragou, num abrir e fechar de olhos, naquela quinta-feira, dia 9 de Julho, cinco milhas a sudoeste da sua pedra epónima.

Desta vez não morreu ninguém, mas nem por isso foi menor o susto, nem deixou de estar iminente uma nova tragédia na comunidade piscatória nacional, como sempre com centro e alma nas Caxinas.

Propriedade do armador Francisco Cruz, da Póvoa de Varzim, a motora Arcanzil largou das Caxinas na sexta-feira anterior ao naufrágio, para a pesca artesanal do tamboril (géneros Lophius e Lophiodes) e do peixe-galo (Zeus faber), com uma tripulação de quatro pescadores: Manuel Fernandes Coentrão, de 49 anos, Caetano José Rajão, de 47 anos, Rúben Figueiredo Martins, de 27 anos, todos de Vila do Conde, e José Moita Martins, de 41 anos, da Póvoa.

O mais novo dos pescadores era também o mestre da Arcanzil, e o pescador poveiro é irmão de Américo Moita Martins, um dos cinco pescadores que perderam a vida no naufrágio da motora Santa Maria dos Anjos, e cujo corpo desapareceu no mar, à ilharga da Serra de Sintra, em Janeiro passado, como aqui reportámos.

Às 06H15 da manhã daquela última quinta-feira – era já claro o dia, não havia vento e o mar estava calmo – iam os pescadores a navegar de uma para outra arte de pesca, nos dois casos constituídas por redes de emalhar com emalhe de fundo, quando a motora abriu inexplicável e inopinadamente água: à popa, segundo informação do capitão do porto de Setúbal; em lugar indeterminado do casco, mas não à ré, segundo a opinião dos pescadores resgatados do naufrágio.

É certo que naquela altura da faina, que contava já seis dias de navegação, a motora se encontrava um tanto empinada de proa e abatida de popa, em virtude do volume e carga do pescado entretanto capturado e da colocação das artes (redes) em serviço no espaço de recolha e utilização à ré. Mas de aí e do próprio afundamento da embarcação pela ré, não se segue que a motora se tenha alagado e afundado num repente por via de abertura de água à popa.

Um dos pescadores ter-se-á dado conta do alagamento súbito da embarcação e alertou imediatamente para o efeito o jovem mestre Rúben Figueiredo Martins, que desceu de pronto ao porão e encontrou já a camarinha totalmente alagada.

Considerando perdida a motora, ordenou o lançamento da balsa pneumática e o abandono da embarcação, enquanto ele próprio voltou à cabina de comando para accionar o rádio com alarme e localização automática, operação que não teve tempo de completar, dado o risco de ser engolido no afundamento.

Mas foi o último a abandonar a motora Arcanzil. O barco foi logo ao fundo, como explicou mais tarde, em Sesimbra, aonde se deslocou propositadamente, o mestre José Festas, presidente da Associação Pró-Maior Segurança dos Homens do Mar.

Não tendo sido possível, como se verificou já, accionar o sistema rádio distress de localização automática, os quatro náufragos ficaram na balsa, à espera de que a sorte trouxesse alguém ao seu encontro.

carlos e rui 01O que efectivamente aconteceu por volta das oito horas da manhã, quase duas horas depois do naufrágio, quando avistaram a motora Carlos e Rui, também registada na capitania de Sesimbra, sob a matrícula SB-1225-C.

Alertada pelo very light dos náufragos, a motora Carlos e Rui recolheu-os da balsa, e preveniu, por cerca das 08H20, a capitania do porto de Setúbal, cujo capitão se dirigiu ao local para resgatar os pescadores.

Tarefa esta última que não foi necessária, pois o próprio Capitão do Porto considerou que os náufragos se encontravam mais confortáveis e protegidos na motora salvadora do que na lancha da capitania, limitando-se ele próprio a acompanhá-los de perto até Sesimbra, onde os aguardava uma ambulância que os transportou ao Hospital de São Bernardo, em Setúbal.

Nem por desta vez, e muito felizmente, não ter morrido nenhum dos pescadores naufragados se segue que deva merecer menor reflexão o naufrágio da motora Arcanzil.

Devemos até aproveitar a ocasião para nos questionarmos sobre os motivos pelos quais se verificam tantos naufrágios de embarcações de pesca artesanal em Portugal, com perdas anuais intoleráveis de vidas de pescadores e de meios e instrumentos de produção, que cada vez mais arruínam, e na verdade estão mesmo a liquidar, um sector fundamental da actividade económica, da produção de riqueza e da independência financeira do País.

E não se alegue que a causa principal destes prejuízos incomportáveis reside nas condições meteorológicas adversas do mar português, pois os nossos meios-irmãos galegos, trabalhando sob condições climatológicas mais drásticas, raramente naufragam e, quando acontece naufragarem, é muitas vezes com embarcações construídas em Portugal e de matrícula portuguesa, expediente aliás destinado a apoderarem-se eles das nossas quotas de pesca, como ocorreu, nomeadamente, com os naufrágios das embarcações de pesca Santa Ana, em 10 de Março de 2014, no Cabo Peñas, e Mar Nosso, em 17 de Abril de 2014, na costa das Astúrias, nos quais naufrágios morreram também dois pescadores portugueses no primeiro e três no segundo.

Não está pois nas condições meteorológicas do mar português a causa principal dos naufrágios das nossas embarcações de pesca artesanal, que aliás, e como se colhe do exemplo do próprio naufrágio da motora Arcanzil, naufragam mesmo quando o mar está calmo, não correm ventos, não adensam nevoeiros e o dia é propício à faina.

Seja como for, a polícia marítima e os serviços de guarda costeira da Armada não apuram, como em bom rigor lhes cumpre, as causas reais e concretas dos frequentes naufrágios das nossas embarcações de pesca artesanal, ficando toda a gente, mas em especial os próprios armadores e pescadores, na mais completa das ignorâncias sobre os motivos porque naufragam e morrem.

As capitanias dos portos, a polícia marítima e a Marinha de Guerra têm de adoptar medidas imediatas para o apuramento dos factos causadores dos naufrágios, e publicar, para cada um dos naufrágios, o competente relatório final.

O país e a economia portuguesa não podem andar a perder embarcações e homens, sem que se conheçam os motivos das tragédias e se adoptem as necessárias medidas correctoras e preventivas.

Os governos de Cavaco Silva – sujeito que tem passado o último mandato presidencial a tentar fazer esquecer o que fez contra a economia do mar português nos dois mandatos como chefe do governo – liquidaram em 10 anos – 1985/1995 – a nossa frota de comércio e as frotas de pesca longínqua, industrial e de arrasto, e, ao mesmo tempo, abandonaram à sua sorte a frota de pesca artesanal.

Com a entrada na Comunidade Económica Europeia em 1 de Janeiro de 1986, e com a política de abate subsidiado adoptada por todos os governos nos últimos 29 anos, Portugal perdeu 30% da sua frota de pesca artesanal, que continua a ser dramaticamente reduzida por sucessivos, incompreensíveis e inexplicáveis naufrágios.

Em relação às embarcações que não foram abatidas, os governos adoptaram uma política de recuperação de velhos cascos, gastando-se cem mil a duzentos mil euros na recuperação de embarcações que, construídas de novo, pouco ultrapassariam o custo dos trezentos mil euros.

É evidente que deveríamos ter aproveitado os subsídios europeus a fundo perdido não para recuperar velhos cascos, mas para construir embarcações novas, como fizeram os espanhóis.

A Marinha de Guerra, os arquitectos e engenheiros navais, os estaleiros, as associações de armadores e de pescadores devem tomar a peito o estudo, definição e construção do tipo de embarcação que deve dotar a nossa frota de pesca artesanal, atendendo às condições meteorológicas dos nossos mares, onde terão de actuar, e às artes de pesca que haverão de empregar.

Mas não só!

Terão de ser fundadas as necessárias escolas de pesca, para formação adequada dos pescadores nas diversas especialidades de funções em que são chamados a trabalhar nos dias de hoje. Nos naufrágios mais recentes, parecem evidentes deficiências na formação dos próprios pescadores, apesar dos esforços na educação de segurança levados a cabo pela associação presidida pelo mestre José Festas.

Não se compreende também que a lei só exija a instalação da radiobaliza (EPIRB) nas embarcações de pesca artesanal novas, pois viu-se já que a falta dessa aparelhagem pode ter conduzido à morte, por inexistência de sinalização tempestiva, os cinco pescadores da motora Nossa Senhora dos Anjos, e deixou os pescadores da Arcanzil à espera de um golpe de sorte, chamado Carlos e Rui, para serem encontrados na balsa pneumática.

Estes aspectos fundamentais da sinalização de segurança só se lograrão quando todas as embarcações estiverem dotadas de instrumentos electrónicos para escuta contínua, desde o instante em que deixam o porto e até que a ele regressem.

Oxalá pudéssemos e soubéssemos aproveitar os ensinamentos dos naufrágios em que não morre ninguém, para alcançar que no futuro mais ninguém morra.


Arnaldo Matos





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