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Vila Dias: os moradores não devem embarcar em ilusões e falsas promessas!

No artigo que anteriormente publicámos sobre a Vila Dias – Vila Dias: festejos antecipados, desfechos ensombrados! –, demos a conhecer aos nossos leitores um dos pontos mais relevantes da intervenção de Fernando Medina, o presidente da Câmara Municipal de Lisboa (CML), na folclórica e oportunista feira das vaidades que constituiu a “cerimónia” de celebração do alegado contrato de promessa de compra e venda – nunca exibido – da Vila Dias pela CML, ao abrigo do direito de preferência que lhe assiste.

No mesmo artigo alertávamos para um popular e sábio ditado português que diz que “quando a esmola é muita...o pobre desconfia”! E, se não desconfia, devia desconfiar! Depois de cerca de uma década a negar aos moradores da Vila Dias, ao Beato, o seu direito a uma habitação digna, à reparação das casas degradadas, à construção de uma rede de esgotos – até aos dias de hoje inexistente –, porque é que surge, tal como D. Sebastião num dia de nevoeiro, o executivo camarário a congratular-se por ter adoptado uma solução há muito proposta pelos moradores e à qual a CML sempre se tinha oposto? Porque é que, só agora, volvida quase uma década, decidiu a CML invocar um direito que lhe assiste, o direito de preferência na compra da Vila Dias?

Segundo afirmou Medina, no seu discurso de “celebração” no passado sábado, no Parque Infantil da Vila Dias, no quadro da crise da habitação que assola Lisboa, o foco da acção do gabinete que a CML vai instalar na Vila Dias, logo que tenha sido executada a transferência da sua propriedade para o património camarário, será o de “repensar” que projectos irão surgir naquele espaço.

Não será necessário puxar muito pela cabeça para, tendo nós presente numerosos exemplos de como a CML se tem posicionado como agente especulador e promotor imobiliário, prever o que reserva o executivo camarário para aquela Vila. Contando com a sinistra figura que dá pelo nome de Manuel Salgado e com Paula Marques, a vereadora que tem a seu cargo o pelouro do Desenvolvimento Local e a Habitação, o presidente Fernando Medina já nos deu uma perspectiva muito realista de quais são as suas reais intenções para fechar a “quadratura do círculo” que está a montar para Marvila, para o Beato e para grande parte da zona oriental de Lisboa.

Numa reunião com os munícipes de Marvila e do Beato, Medina anunciou a construção de um grande parque verde naquela zona da cidade que, supostamente, daria continuidade à ligação do corredor verde projectado e desenhado pelo arquitecto  Gonçalo Ribeiro Telles há mais de três décadas. Já em Fevereiro do ano corrente, Medina havia inaugurado o Parque Ribeirinho Oriental, uma infraestrutura que tem início junto dos armazéns da Doca do Poço do Bispo e se estende, para norte, ao longo de 600 metros, ocupando uma área de quatro hectares junto ao rio Tejo, estando prevista uma segunda fase, que se estenderá até ao Parque das Nações.

Dando a entender que estes dois espaços verdes servirão a população de Lisboa e, em particular, os moradores das zonas de Marvila e do Beato, o que Medina escamoteia é que, a confinar com os ditos espaços verdes estão já em fase de implementação dois projectos imobiliários destinados à média e alta burguesia, com preços de mercado altamente especulativos, inalcançáveis pelas bolsas da maioria dos habitantes que foram expulsos da cidade de Lisboa para que estas negociatas pudessem ocorrer... tranquilamente!

O primeiro lote do mais luxuoso desses empreendimentos – o Prata Riverside Village –, desenhado pelo arquitecto Renzo Piano, vencedor de um prestigiado prémio Pritzker, já foi concluído. Outro virá a sê-lo ainda no decurso do corrente ano para, depois, se dar início a uma terceira fase. Este empreendimento de luxo, nunca é de mais realçar, inclui lojas, restaurantes e galerias e deverá estar concluído em 2023. Um projecto que revela bem a preocupação de Medina e seus capangas com a crise da habitação que se vive em Lisboa.

Se julgavam que Medina se ficava por aqui, desenganem-se! Considerado um condomínio do futuro surge outro empreendimento de habitação – o Prateado – Marvila Lofts –, situado nas traseiras do Café Com Calma, na Rua Pereira Henriques. Assinado pelo Tekstudio Arquitectos, o projecto prevê que os proprietários dos 48 lofts estejam instalados até ao final de 2021. Para satisfazer os privilégios de sectores da média e da alta burguesia, o condomínio terá jardins privativos e grandes terraços. Para além do mais, proprietários de ambos os empreendimentos contarão com várias marinas e outras infraestruturas de recreio já intaladas na frente ribeirinha oriental da margem direita do Tejo.

Na sua desmedida ambição em criar valor, não certamente para a classe operária e para os trabalhadores, mas para a grande burguesia, Medina não fecha o ciclo por aqui. Assegurado o direito à habitação para esta casta capitalista, sanguessuga e exploradora, há que garantir espaços para os seus negócios, ou seja, para sujeitar à escravatura assalariada aqueles que, entretanto, foi expulsando da cidade de Lisboa.

Para tal, foi criado aquilo a que, pomposamente, designou por Hub Criativo do Beato. Assim, na antiga Manutenção Militar – fundada em 1897 para garantir o fornecimento de alimentos para o exército português –, está a surgir a maior incubadora (de empresas) da Europa. A abertura do primeiro edifício está prevista para o 2º semestre deste ano na antiga Fábrica da bolacha, um espaço com mais de 10 mil metros quadrados a ser ocupado pela Factory, uma empresa alemã de coworking – um eufemismo para trabalho precário e ... baratinho! Outro dos ocupantes desse edifício será o Centro de Desenvolvimento Digital  de um dos gigantes da indústria automóvel, a Mercedes-Benz.

O segundo edifício deste complexo, que deverá estar concluído no início de 2021, será o da antiga Central Eléctrica, que acolherá a The Browers Company, a nova marca da Super Bock, um projecto assinado pelos arquitectos Souto Moura e Nuno Graça Moura. No final desse ano, a antiga Fábrica do Pão será transformada no novo espaço da Startup Lisboa. O projecto inclui mais 18 edifícios que ocuparão mais cerca de 35 mil metros quadrados, estando anunciados mais espaços de residência partilhada, uma zona de restauração, um núcleo museológico da EGEAC e um repair café.

Como se vê, tudo projectos que afastam ainda mais os cidadãos da sua cidade e entrega Lisboa, de forma arbitrária, à especulação imobiliária e ao patobravismo. Chegados a este ponto será importante voltarmos à questão que inicialmente colocámos: porque é que a Câmara Municipal de Lisboa, o executivo camarário e o seu presidente Fernando Medina, se congratula tanto com a alegada compra da Vila Dias, uma solução a que se opuseram durante cerca de uma década?

A resposta só se pode enquadrar nos relatos das negociatas imobiliárias em que a presidência da CML, de Costa a Medina, sempre esteve envolvida, em toda a cidade de Lisboa e agora, de forma mais visível, na zona oriental da capital. E é isto que nos leva a alertar os moradores da Vila Dias de que correm um sério risco de estarem a festejar precipitadamente um direito que ainda não lhes foi, de todo, assegurado.

O caminho que em nosso entender deve ser seguido pelos moradores da Vila Dias, aproveitando a unidade que foi construida por eles ao longo de anos de luta dura e prolongada, passa por imporem que a sua Associação tenha assento, com voto de qualidade, na estrutura que vai ser criada para gerir aquele espaço. Esta será a única forma de assegurar, minimamente, que as decisões a tomar por essa estrutura emanam da vontade dos moradores e não são impostas de fora, pela CML e pela sua agenda de especulação e promoção imobiliária. Esta será a única forma de assegurar o direito à habitação e à dignidade, direitos pelos quais sempre se bateram.

Os moradores da Vila Dias sempre demonstraram uma enorme capacidade de luta e de resiliência e não devem baixar os braços e, muito menos, aderir a festejos que, tudo o indica, só servem para os adormecer e distrair das reais intenções do que lhes reserva a CML, a sua vereação e o seu presidente, Fernando Medina.

Os moradores da Vila Dias nunca deverão esquecer o que a sua história de luta lhes ensinou. O poder não está na Junta de Freguesia do Beato ou na Câmara Municipal de Lisboa. Conjunturalmente, pode parecer assim! Mas, o verdadeiro poder está no povo, está nos moradores e na sua capacidade de luta e organização!

Os moradores da Vila Dias, vencerão!

03Mar2020

LJ

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