INTERNACIONAL

O revisionismo no poder é o social-fascismo no poder

Sobre o massacre de Markina e a heróica luta dos Mineiros da África do Sul

mineiros assassinadosNo seguimento de um poderoso movimento grevista que nos últimos meses se tem intensificado nas minas da África do Sul, os trabalhadores da maior mina de platina explorada pela empresa britânica Lonmin (a mina de Marikana, situada em Rustenberg, no noroeste do país) desencadearam, no passado dia 9 de Agosto, uma greve por tempo indeterminado, por melhores condições de remuneração e de trabalho. Ao sétimo dia de greve, o governo, mancomunado com a administração da empresa e com alguns sindicatos, com destaque para a principal organização sindical, ligada ao partido do poder, o ANC, organizou e consumou um hediondo massacre sobre os trabalhadores em greve, mandando a polícia assassinar a sangue-frio um número ainda não determinado de mineiros (34 na versão do governo) e ferindo gravemente cerca de oitenta mais. Outros 289 trabalhadores foram encarcerados e começaram já a ser julgados. Apesar desta acção criminosa e desesperada, cuja natureza e gravidade são em tudo idênticas às dos crimes e massacres perpetrados pelo sistema designado de “apartheid” que vigorou no país até meados da década de 1990, os mineiros de Marikana mantêm-se firmes na sua luta. Quando escrevemos estas linhas, a greve prossegue e começou já a estender-se a outras explorações mineiras.



O contexto político dos acontecimentos

O confronto de classes aqui em análise reveste-se de uma importância política muito significativa. Ele ocorre num país em que, há cerca de duas décadas teve lugar um processo de transição para um modelo político democrático, então apresentado como exemplo de uma dita fraternidade inter-racial e interclassista que o ambiente político criado pela queda do Muro de Berlim supostamente propiciara. Tendo aceitado firmar um compromisso político com as classes dominantes que implicava a manutenção da estrutura capitalista do país, o Congresso Nacional Africano (ANC), partido no poder desde então e que dirigira a luta do povo sul-africano contra o regime do
apartheid, acabou por abandonar, mesmo formalmente, a luta pelo socialismo e transformou-se no representante de uma nova burguesia negra a qual, em conjunto com as anteriores classes dominantes, mantém hoje um sistema de exploração e opressão dos trabalhadores e do povo sul-africano que em nada difere do que vigorava antes do fim do apartheid. A África do Sul continua a ser um dos países do mundo em que as desigualdades sociais são mais acentuadas, desigualdades essas que nos últimos anos têm aumentado de forma notória. As enormes riquezas minerais do país continuam a ser exploradas pelo grande capital estrangeiro, com os respectivos trabalhadores sujeitos a condições de vida e de trabalho degradantes e miseráveis. Para manter este sistema, foram criados pelo poder político mecanismos denominados de “black economic empowerment”, através dos quais se promove a ascensão às classes capitalistas de uma nova burguesia nacional. Um dos canais privilegiados desta ascensão são precisamente as estruturas dirigentes do ANC e dos sindicatos apoiados pelo regime, destes se destacando o sindicato dos mineiros, o NUM.

 

O papel do PCAS

Um particularidade do sistema político da África do Sul, e que na actual situação se reveste de considerável importância, é o lugar e o papel desempenhado pelo chamado Partido Comunista da África do Sul (PCAS). Na luta contra o sistema do apartheid, particularmente a partir de meados da década de 1940 e, formalmente, a partir de 1955, o PCAS desenvolveu a sua acção integrado nas estruturas do ANC, aí assegurando lugares proeminentes de direcção. Após o fim do apartheid, o PCAS continuou a basear toda a sua acção política externa no quadro do ANC, representando por essa via um dos esteios dos órgãos de governo no país. A começar em 1994 (quando o ANC venceu as primeiras eleições pós-apartheid) até hoje, o PCAS nunca participou autonomamente em eleições, integrando sempre, com fortes contingentes de candidatos, as listas do ANC. Se nos reportarmos à situação presente, o PCAS tem oito ministros e quatro vice-ministros no governo, abrangendo estes uma parte significativa dos principais dirigentes do partido, incluindo o seu secretário-geral, Blade Nzimande. O secretário-geral do ANC, Gwede Mantache, é membro do Comité Central do PCAS e no Comité Nacional Executivo do ANC existem seis outros membros da estrutura dirigente máxima do PCAS. O presidente do COSATU (a central sindical que apoia o governo), Sduma Dlamini, é também membro do CC do PCAS, o mesmo acontecendo com o presidente do sindicato mais importante do COSATU, o sindicato mineiro NUM, Senzeni Zokwane. Recentemente, numa luta interna no ANC, o PCAS apoiou a facção do actual presidente do partido e chefe do governo, Jacob Zuma.

Na sua acção política no seio do governo da África do Sul, os ministros do PCAS lideraram alguns dos processos que maior oposição suscitaram por parte dos trabalhadores, como foi o processo de privatização das empresas e serviços públicos, que se intensificou a partir do início da década de 2000. Nessa altura, o ministro encarregue de dirigir tal processo de privatizações era Jeff Radebe, membro do CC do PCAS (Ministro da Justiça no actual governo), o qual sempre justificou a acção do seu partido nesta matéria com base na experiência de privatizações da República Popular da China. Data desta época o estreito relacionamento entre o PCAS e o chamado Partido Comunista da China. Este é um factor importante a ter em conta na análise dos actuais acontecimentos políticos na África do Sul, devido aos fortes interesses do capitalismo e do imperialismo chinês no continente africano e, em particular, no que se refere às riquezas minerais da África do Sul, e tendo presente o contexto das fortes disputas com outros interesses capitalistas e imperialistas em torno dessas mesmas riquezas minerais e da importância geo-estratégica da África do Sul.

Mas não é apenas na sua natureza capitalista que o “modelo chinês” ganha relevo na presente situação, é também no carácter repressivo e fascista da sua componente política. Como irá ficar patente na descrição dos acontecimentos na mina de Marikana que adiante se fará, o PCAS assumiu nos mesmos um elevado protagonismo, imprimindo um carácter tipicamente social-fascista à actuação do poder político sul-africano nesses mesmos acontecimentos.




Descrição cronológica dos acontecimentos

9 e 10 de Agosto

Depois de quebras sucessivas de compromissos por parte da administração da Lonmin em reunir-se com representantes dos mineiros para negociar um aumento salarial e a melhoria nas condições de trabalho e de habitação, cerca de 3000 dos 28000 trabalhadores da mina de Marikana – a totalidade dos perfuradores de pedreira (“rock-drill operators”), que é o sector mais especializado e do qual depende todo o funcionamento da mina – declaram-se em greve por tempo indeterminado. O apelo à greve é seguido pela esmagadora maioria dos demais trabalhadores mineiros. Dos dois principais sindicatos existentes na empresa, um, o Sindicato Nacional dos Mineiros (National Union of Mineworkers – NUM), ligado à central sindical Congresso dos Sindicatos da África do Sul (Congress of South Africa Trade Unions – COSATU), opõe-se à greve, enquanto o segundo, a Associação Sindical dos Trabalhadores das Minas e Construção (Association of Mineworkers and Construction Union – AMCU), apoia essa mesma greve.

Apesar de os representantes dos trabalhadores em greve declararem expressamente que a sua luta é contra a administração da mina e de os filiados em ambos os sindicatos participarem massivamente na iniciativa grevista, o confronto entre estas duas organizações sindicais é utilizado pelos capitalistas e pelo governo para tentar fazer passar a ideia de que todo o conflito se resume a uma luta interna no seio dos trabalhadores, motivada por uma putativa tentativa da AMCU de conquistar para as suas fileiras trabalhadores filiados no NUM, tendo em vista ser reconhecido pela administração como interlocutor nas negociações laborais, enfraquecer esta última organização e vir a tornar-se no sindicato maioritário na empresa.

No quadro desta tentativa de diminuir o alcance e os objectivos da luta, são desencadeadas acções provocatórias. A primeira dessas acções consistiu num ataque a tiro, por atiradores furtivos, a uma manifestação dos mineiros em greve, realizada no dia 10, o qual se saldou em quatro feridos graves entre os mineiros.


Entre 11 e 14 de Agosto

Intensificam-se as manobras por parte da administração, da polícia e do NUM para tentar sabotar a greve. No contexto dessas manobras, sucedem-se os atentados e as vítimas mortais, cujo número chega a dez, registando-se igualmente um grande número de feridos. Duas das vítimas mortais são seguranças da empresa, cinco outras resultam de um confronto entre a polícia e os grevistas (dois polícias e três trabalhadores) e três outras apareceram mortos em circunstâncias não esclarecidas.

Haverá, na origem desta violência, motivos diversos, desde acções repressivas desencadeadas pela administração e pela polícia contra os trabalhadores, até respostas por parte destes a ataques das forças ditas de segurança, passando por puras iniciativas de provocação para tentar sabotar a greve. Sejam quais forem esses motivos, uma torrente de propaganda é nesta altura sistematicamente lançada pelas forças da reacção à greve, tentando fazer crer que toda a luta dos trabalhadores se resume a um confronto entre sindicatos, nos termos antes referidos. Os próprios dirigentes do NUM e do COSATU repetem continuamente esses mesmos argumentos. Já os dirigentes da AMCU responsabilizam directamente o NUM pelas mencionadas acções de violência.

Entretanto, centenas de polícias, incluindo unidades a cavalo apoiadas por veículos blindados e helicópteros, ocupam a zona circundante à mina. Prosseguindo com firmeza a sua greve, os trabalhadores decidem concentrar-se em massa numa colina fronteira à mina, no campo de Wonderkop, local que lhes permite dominar os acontecimentos e onde contam poder fazer face às investidas da polícia e às acções dos provocadores. Por sua vez, esgrimindo uma decisão judicial que considera a greve ilegal, a administração da Lonmin emite um ultimato aos trabalhadores para voltarem ao trabalho até dia 15, ameaçando despedir todos aqueles que o não fizerem, ultimato esse que é dirigido em particular aos 3000 perfuradores de pedreira que desencadearam a greve, mas que abrange igualmente todos os demais participantes na greve, que é a esmagadora maioria dos trabalhadores.

Das organizações que suportam e integram o governo da África do Sul – uma chamada “tripla aliança” formada pelo Congresso Nacional Africano (African National Congress - ANC), o COSATU e o Partido Comunista da África do Sul (PCAS) -, é este último o primeiro a tomar posição sobre os acontecimentos na mina de Marikana, através de um comunicado de imprensa emitido no dia 14 de Agosto, antes de qualquer posição oficial de entidades governamentais sobre a matéria. Nesse comunicado, o PCAS não diz uma palavra sobre a greve massivamente seguida pelos trabalhadores, então já no seu quarto dia, faz coro com a tese de que tudo o que se passa na mina de Marikana se resume a ataques dirigidos contra o NUM, lamenta a acção demasiado complacente da polícia para com os trabalhadores em greve (nunca mencionados como tal e sempre provocatoriamente associados aos ditos opositores do NUM) e apela à prisão dos que considera serem os responsáveis pela violência. Vale a pena citar algumas passagens deste comunicado, uma vez que é ele que dá o tom a toda a propaganda futura do governo e dos opositores à greve dos mineiros.

Intitulado “Tomada de posição sobre a violência na Lonmin”, o comunicado começa por afirmar que “O PCAS está chocado e consternado pelos relatos de violência nas instalações mineiras da Lonmin”, afirmando mais à frente, depois de aludir a um suposto interesse da administração da empresa em enfraquecer o NUM e a uma invocada tentativa por parte da AMCU em forçar os trabalhadores a aderir a esta organização, o seguinte: “Tornou-se claro para o PCAS que aqueles que têm motivos para minar o poder político e reivindicativo do NUM se dedicaram agora à violência, incluindo o assassinato, tendo por objectivo diminuir a força deste sindicato. A acção das entidades que deveriam forçar a aplicação da lei tem deixado muito a desejar nesta situação.” A concluir, diz o comunicado do PCAS: “O PCAS apela à polícia para agir rapidamente e trazer à justiça os bandidos que substituíram a razão e o diálogo por balas”.


15 de Agosto

Secundando a tomada de posição do PCAS, o Ministro dos Recursos Minerais afirma-se pela primeira vez gravemente preocupado pelos “protestos violentos” na mina de Marikana, diz que tudo se circunscreve a rivalidades entre sindicatos e afirma estar disposto a trabalhar com o Ministro das Polícias para pôr termo a tais “protestos” e prender os responsáveis.

Uma assembleia de trabalhadores, reunida para decidir sobre a continuação da luta, decide expulsar da reunião o presidente do NUM, Senzeni Zokwana, que é um dos membros mais destacados do Comité Central do PCAS (presidente deste partido e quarto na respectiva hierarquia). Intervindo igualmente nesta assembleia, o presidente da AMCU, Joseph Mathunjwa, é por sua vez fortemente aplaudido.

Entretanto, nenhum trabalhador acata o ultimato da administração da Lonmin, o que levou esta a suspendê-lo. Realizam-se “negociações” entre a polícia e os trabalhadores em greve. Uma das exigências da polícia é a desocupação da colina de Wonderkop. Os representantes dos trabalhadores suspendem as ditas negociações ao verificarem que era um dirigente do NUM que se lhes dirigia por meio de um dispositivo sonoro a partir de um veículo blindado, fazendo-se passar por polícia. À comunicação social os mesmos representantes afirmam que os trabalhadores estão firmemente unidos e que não se encontram dependentes de qualquer das organizações sindicais quanto às decisões que tomam.

Entretanto, perante o fracasso do seu ultimato aos trabalhadores, o representante da Lonmin, Barnard Mokwena, declarou tal ultimato suspenso e informou que a administração tinha reunido com o NUM e três outras organizações sindicais reconhecidas pela empresa, deixando de fora a AMCU, e que todas elas tinham afirmado nada ter a ver com a greve e com a violência na mina.

No final do dia, as forças policiais colocam um forte aparato em frente à colina onde cerca de 3000 trabalhadores grevistas, muitos deles dispondo de paus, lanças e catanas como armas de defesa, se mantêm concentrados.

Neste mesmo dia, o ANC fez sair a sua primeira posição oficial sobre os acontecimentos na mina de Marikana. Referindo-se à greve dos mineiros como “protesto violento”, o principal partido do governo condena esse “protesto” e faz sua a tese de que o mesmo tem exclusivamente a ver com um confronto entre o NUM e a AMCU, uma posição que apesar de tudo não é inteiramente coincidente com a do PCAS, já que deixa entrever, no espírito do texto, uma relativa equidistância relativamente a essas duas organizações sindicais. Anunciando o facto – e nele se louvando – de o NUM, a AMCU e a administração da Lonmin terem concordado em realizar uma reunião conjunta para chegar a uma “solução amigável” do conflito, o comunicado do ANC tem esta passagem significativa e algo surpreendente, tendo em conta o que se irá passar no dia seguinte: “O ANC felicita o Corpo da Polícia da África do Sul e a Força de Defesa Nacional da África do Sul pela sua pronta intervenção e pela colocação de cerca de 3000 polícias fortemente armados dentro e em torno do recinto da mina. A presença da polícia suprimiu as tensões e estamos sensibilizados pelo facto de a calma ter sido restaurada”.

Um cerco total a 3000 trabalhadores grevistas concentrados numa colina há vários dias para melhor se defenderem de ataques e provocações; um polícia “fortemente armado” para cada trabalhador com um pau ou com uma lança como arma de defesa; um aparato impressionante de veículos blindados Casspir e de helicópteros de ataque – de acordo com o comunicado do ANC, isto significa a “supressão de tensões” e a “calma restaurada”. Mas esta era na realidade a antecâmara de um terrível massacre que, como irá ficar plenamente demonstrado, estava já completamente preparado e decidido.


16 de Agosto

Logo no início do dia, o porta-voz da polícia, Dennis Adriao, diz aos jornalistas o seguinte: “Hoje é infelizmente o Dia-D. Trata-se de uma concentração ilegal. Tentámos negociar e continuaremos a fazê-lo, mas se isso falhar passaremos para uma nova fase táctica.

Ainda na manhã deste dia, o secretário-geral do NUM, Frans Baleni, faz uma diatribe contra os mineiros em greve. Depois de dizer que “os nossos membros estão mais do que prontos para ir trabalhar”, Baleni apelou à polícia para garantir a passagem dos fura-greves por entre os grevistas.

Estando iminente o assalto da polícia, o presidente da AMCU, Joseph Mathunjwa, é deixado passar pela polícia para fazer um último apelo aos mineiros no sentido de estes abandonarem a colina. Estes recusam e permanecem firmes nos seus postos.

Quinze minutos depois, a polícia coloca uma cerca de arame farpado a separar os mineiros dos bairros onde habitam, junto à mina, deixando uma abertura de apenas cinco metros, local onde se concentram unidades de elite, armadas de metralhadoras. Veículos Casspir e tropas a pé e a cavalo cercam completamente a colina, enquanto helicópteros sobrevoam o local.

mineiros assassinados 01Pouco antes das 16H00 começa o ataque. Grandes quantidades de gás lacrimogéneo são lançadas sobre a multidão. Quando alguns trabalhadores tentam passar pela abertura na cerca de arame farpado, são alvejados à queima-roupa. Os que prostrados no chão ainda se mexem são abatidos a sangue-frio. As cenas desta primeira matança são as únicas que foram filmadas e difundidas pela televisão. Percebendo que iam ser massacrados e que não podiam passar para as zonas habitacionais, os trabalhadores resistem com as armas artesanais de que dispunham ou tentam fugir na direcção oposta, em campo aberto. É nesta altura que uma barragem de tiro terrestre e a partir de helicópteros assassinou ou feriu gravemente, uma grande parte pelas costas, cerca de cem trabalhadores. Alguns foram esmagados pelos Casspir. Durou menos de quatro minutos o tiroteio fatal. Na versão do governo, um total de 34 mineiros morreram no local e 78 ficaram feridos. Outros 289 foram presos. Nenhum polícia foi morto ou sequer ferido. Nenhuma arma de fogo foi encontrada na posse dos grevistas. Um massacre meticulosamente planeado e executado pelo governo e pelas suas polícias.

Logo após o massacre, o governo emitiu um comunicado mistificador e provocatório, no qual afirma o seguinte: “No seguimento de extensivas e fracassadas negociações para desarmar e fazer dispersar um grupo fortemente armado e ilegalmente concentrado numa colina perto da mina da Lonmin, o Corpo da Polícia Sul-Africana foi atacado pelo grupo, que usou diversas armas, incluindo armas de fogo. Daqui resultaram vários indivíduos mortos e outros feridos. A cena do crime (…) está agora a ser examinada [por corpos especializados da polícia]”.

Colocando-se numa postura terrorista e fascista, o governo sul-africano chama assim criminosos a milhares de trabalhadores em greve e que acabavam de ser miseravelmente chacinados a tiro, sem possibilidades de se defender ou fugir. O reconhecimento que no comunicado se faz de que nenhum polícia sofreu qualquer tipo de ferimento, num confronto em que supostamente, na versão governamental, cerca de 3000 mineiros fortemente armados, incluindo com armas de fogo, teriam atacado a polícia a tiro e por outros meios, é a mais cabal demonstração da falsidade desta versão e do carácter premeditado do massacre.

No seguimento deste comunicado, o presidente do governo, Jacob Zuma, ao mesmo tempo que dava toda a cobertura à actuação da polícia, anunciou a constituição de uma comissão de inquérito ministerial, quase toda ela formada por membros do próprio governo e presidida pelo Ministro da Presidência, Collins Chabane. Ficou assim aparentemente montada uma encenação destinada a responsabilizar as vítimas e ilibar os carrascos, assim como para atribuir algum “excesso” eventualmente admitido neste acto de repressão a um qualquer “descontrolo” de polícias “inexperientes”.

Se mais não houvesse, um simples facto atesta como o massacre foi decidido e organizado ao mais alto nível do poder vigente. No final do ano passado, no seguimento de várias mortes e feridos graves em acções repressivas da polícia sobre trabalhadores em luta provocadas por balas de borracha e dos fortes protestos que tais acontecimentos geraram, o Ministro das Polícias emitiu uma directiva proibindo a utilização desse tipo de balas em acções de “controlo de multidões”. Ainda recentemente, em Fevereiro deste ano, em confrontos com milhares de trabalhadores em greve nas minas de platina da empresa Impala Platinium (Implats), a polícia tinha seguido esta directiva do governo, recorrendo à concentração de grande número de efectivos e de meios não letais de repressão em situações muito similares à que agora se viveu (e vive) na mina de Marikana, ficando então cabalmente demonstrada a suficiência destes meios em tais emergências. Ora, desta vez em Marikana não só não se esboçou sequer o uso das tácticas usadas na Implats (então com pleno êxito, na perspectiva da polícia) como nem sequer foram utilizadas balas de borracha. O ataque foi feito, desde o início, com fogo real de armas de repetição, o que nunca poderia acontecer se não houvesse uma ordem do governo, nas mais altas instâncias, para que isso pudesse ser feito.

Poucas horas depois do massacre, o ANC emitiu um comunicado muito significativo por dois motivos. Primeiro, porque constitui uma prova clara de que tal massacre correspondeu a uma decisão política, executada nos precisos termos em que foi planeada. Depois, porque o seu conteúdo é de uma natureza diferente do comunicado do ANC emitido na véspera.

O texto deste novo comunicado do ANC é muito semelhante ao do comunicado emitido pelo PCAS dois dias antes. Nele se responsabiliza a AMCU e a administração da Lonmin pela existência da greve e se referem as vítimas do massacre exactamente da mesma maneira como, no dito comunicado do PCAS, se referiam as vítimas da violência dos dias anteriores. Assim, de acordo com este comunicado do ANC, o massacre de Marikana foi tão-só um episódio normal de reposição da disciplina laboral, perturbada por acontecimentos considerados indesejáveis. No dia anterior, o mesmo ANC tinha afirmado que o contingente de 3000 polícias colocado na mina garantia a tranquilidade e a calma. Agora, um dia depois, sem sequer se referir a qualquer episódio que tivesse perturbado tal suposta “tranquilidade”, o ANC vem apenas apresentar condolências às famílias das vítimas do massacre, apelar ao governo para que faça um inquérito aos acontecimentos e pugnar pela reposição de um suposto “clima saudável nas relações laborais”.

Num comunicado também emitido no dia do massacre – o primeiro desta organização a tomar posição sobre os acontecimentos na mina de Marikana -, a central sindical COSATU, a que pertence o sindicato NUM e um dos membros da “tripla aliança” que sustenta o governo da África do Sul, reproduz também as posições do PCAS, ou seja, ignora a greve e as reivindicações dos mineiros, declara-se contra os episódios de violência ocorridos nos dias anteriores ao massacre, atribuindo-a a manobras do sindicato ACMU para dividir os trabalhadores, e trata os assassinatos em massa perpetrados pela polícia como correspondendo a uma resposta legítima à “violência” dos grevistas, limitando-se aqui a reproduzir a versão do governo antes mencionada.

Idêntica posição, logo após o massacre, tomou o NUM, cujo porta-voz, Lesib Seshoka, se declarou satisfeito com a forma como a polícia lidou com os “elementos criminosos responsáveis por comportamentos violentos na mina”. Esta mesma posição foi reforçada pelo secretário-geral desta organização, Fans Baleni, o qual, em entrevista concedida a uma estação de rádio, afirmou o seguinte: “A polícia foi paciente, mas aquela gente estava fortemente armada com instrumentos perigosos”.


17 de Agosto

Vários jornais sul-africanos comparam o massacre de Marikana aos ocorridos no tempo do apartheid, particularmente ao de Sharpeville, em 1960, em que foram assassinadas 69 pessoas durante um protesto pacífico contra a discriminação racial.

O PCAS, através da sua organização do Nordeste do país, emitiu o seu primeiro comunicado após o massacre, intitulado: “Prisão imediata de Mathunjwa e Steve Kholekile [principais dirigentes da ACMU] como base para a estabilidade nas minas de Rustenburg e instituição de uma comissão presidencial de investigação”. É um texto sinistro e inteiramente fascista, que não diz uma palavra sobre a matança ocorrida na véspera e que se dedica exclusivamente a atacar o sindicato AMCU, os seus dirigentes e os trabalhadores em greve, bem como a defender o sindicato NUM como sendo a organização sindical única em que todos os trabalhadores se devem filiar. Assim, diz o comunicado do PCAS:

O PCAS do Noroeste associa-se a todos os Sul-Africanos no luto e na apresentação de profundas condolências a todos os trabalhadores mineiros [sic] mortos nas minas de platina na região de Rustenberg como resultado de anarquia, da violência, da intimidação e do assassínio de trabalhadores e de funcionários do NUM. O caos iniciou-se sob o disfarce de reivindicações de aumentos salariais quando, na verdade, é o caos e a anarquia que está a ser usado como meio de recrutamento para a AMCU. (…)

(…) Exigimos a prisão imediata de Steve Kholekile e do Sr. Mathunjwa como coordenadores, organizadores e chefes desta anárquica violência de trabalhadores contra trabalhadores, que tantos mortos e feridos provocou, e isto deve aplicar-se a toda a sua acção e não apenas ao processo da Lonmin.

(…) Os trabalhadores devem estar cientes que o seu inimigo de classe é o sistema [capitalista] e não um sindicato como o NUM ou outros trabalhadores. Os trabalhadores têm de desistir de qualquer tentação de se mobilizarem contra o NUM ou contra outros trabalhadores”.

No comunicado em apreço defende-se a instituição de uma comissão presidencial cujos objectivos, segundo o PCAS e tal como implicitamente se defende no texto, devem ser os seguintes: ilegalização da AMCU, instituição do NUM como único interlocutor nas negociações entre os trabalhadores e as empresas mineiras, e revisão das leis laborais de forma a garantir que apenas os sindicatos do regime sejam autorizados.

O significado político deste comunicado do PCAS é o de que o massacre de Marikana foi a resposta exemplar que o poder vigente no país arquitectou para tentar esmagar um poderoso movimento grevista que se vem desenvolvendo de forma incontrolável entre os trabalhadores mineiros da África do Sul e ainda para fazer face ao crescente isolamento do regime, através da transformação do mesmo numa ditadura terrorista, sob a capa de um pretenso “socialismo”.

O presidente da ACMU, Joseph Mathunjwa, dá uma conferência de imprensa na qual denuncia o massacre, mas sem responsabilizar abertamente os seus mentores. Colocando-se numa posição defensiva, Mathunjwa critica a administração da Lonmin por se recusar a reunir com os representantes dos trabalhadores em greve, levando estes a extremar posições. Mathunjwa descreveu a forma como tentou convencer, sem êxito, os trabalhadores a abandonar a colina de Wonderkop e escusou-se a apoiar a continuação da greve dos mineiros.


18 de Agosto

Um grupo numeroso de mulheres, familiares dos mineiros, concentram-se para exigir a divulgação da lista dos trabalhadores mortos, feridos e a libertação dos prisioneiros. Mostrando também uma firme determinação, entoam cânticos utilizados no tempo da luta contra o apartheid.

Cerca de 15000 mineiros participam numa assembleia em que decidem continuar a greve, considerando ser uma traição aos camaradas mortos suspendê-la nesta altura.

A administração da Lonmin faz um novo ultimato para que os mineiros retomem o trabalho até dia 20, ameaçando de despedimento quem o não fizer. Informa também que só negociará com o sindicato NUM.

Julius Malema, um antigo dirigente da Juventude do ANC e há cerca de um ano expulso do partido, é o primeiro político a encontrar-se com os trabalhadores da mina de Marikana para lhes manifestar o seu apoio. Malema acusa o Presidente Zuma de ser o responsável pelo massacre e exige a sua demissão. Denuncia também o sindicato NUM, acusando-o de vender os trabalhadores e de ser um meio de enriquecimento dos seus dirigentes. Exorta os trabalhadores a continuar a sua luta, apoiando as suas reivindicações. Exige também a nacionalização das minas, um desígnio há muito abandonado pela direcção do ANC e também, mais recentemente, pelo próprio PCAS. É fortemente aplaudido pelos trabalhadores.


19 de Agosto

Na véspera do prazo-limite dado pela Lonmin para os trabalhadores retomarem o trabalho, estes mantêm-se firmes. Um mineiro perfurador de pedreira, Thandubuntu Simelane, entrevistado pelo jornal Mail & Guardian, exprime bem o sentir e a disposição dos mineiros em greve, afirmando: “É um trabalho muito duro. Tem de se perfurar a rocha o dia inteiro coberto de água. Passados cinco anos já não servimos para nada. É melhor morrer que trabalhar por tão pouco dinheiro. Amanhã temos um novo plenário. Eu vou continuar em greve. Vamos continuar a protestar até conseguirmos o que queremos. Até agora a administração não falou connosco. A polícia pode tentar matar-nos outra vez, mas não nos mexemos daqui.

A polícia mantém um forte contingente no local para tentar intimidar os trabalhadores e proteger os que quiserem furar a greve.

Numa postura de grande cinismo e oportunismo político, reflectindo o seu isolamento político e tentando ganhar tempo face à determinação de luta dos mineiros, o Presidente do governo anunciou uma semana de luto no país, entre 20 e 26 de Agosto, pedindo à administração da Lonmin que levante o ultimato até que o luto acabe. Ao fazê-lo, o J. Zuma fez a seguinte declaração: “A nação está em choque e em sofrimento. Durante esta semana, devemos reflectir no carácter sagrado da vida humana e no direito à vida inscrito na Constituição da República. Devemos evitar apontar o dedo e recriminar quem quer que seja. Devemos unir-nos contra a violência, venha ela de onde vier. Devemos reafirmar a nossa crença na paz, na estabilidade e na ordem para construir uma sociedade solidária, livre do crime e da violência”. Maior hipocrisia seria impossível.
 

20 de Agosto

Apesar de alguns trabalhadores da Lonmin terem retomado o trabalho, a grande maioria mantém a greve.

Realiza-se o primeiro debate no parlamento, onde o ANC dispõe de 264 deputados em 400, sobre o massacre de Marikana. Os partidos da oposição criticam a acção da polícia, exigindo saber quem deu ordem para disparos de fogo real e preocupando-se com a melhoria dos métodos policiais de controlo de conflitos. Pelos relatos noticiosos, não se vislumbram no parlamento sul-africano vozes firmes de apoio aos trabalhadores e de denúncia política da acção assassina do governo.

A comissão ministerial de investigação vai ao local do crime e é recebida com protestos pelos trabalhadores e pelas suas famílias. Mais uma vez são ex-membros da Juventude do ANC expulsos do partido, presentes no local, os que dão a cara em apoio dos mineiros. O próprio J. Malema, acompanhado de outros co-relegionários, está neste dia a apoiar os trabalhadores na formulação de queixas judiciais contra o governo por assasínio.


21 de Agosto

A greve estende-se a outras minas de platina. É o caso da Royal Bafokeng Platinum, onde trabalham 7000 mineiros. Segundo os traidores do NUM, a empresa conseguiu neste caso abrir um dos poços da mina. O responsável desta empresa afirma o seguinte: “O NUM demonstrou liderança ao lidar com a situação, explicando aos perfuradores de rocha que a administração aplica o acordo salarial existente e que a empresa não pode atender as suas reivindicações”.

Os mineiros perfuradores da Anglo Platinum American Limited, a maior empresa mundial, exigem aumentos salariais e deram um prazo até dia 23 para a empresa responder às suas exigências.
 



Conclusão

A luta dos mineiros da África do Sul, em particular a das minas de platina da região de Rustenberg, está em pleno desenvolvimento. É uma luta heróica na qual, em circunstâncias muito difíceis, os trabalhadores dispõem de instrumentos organizativos muito incipientes, enfrentando com os mesmos um poder capitalista e repressivo capaz de todas as malfeitorias e atrocidades.

Os contornos, a natureza e o alcance desta luta, bem como o papel dos protagonistas na mesma, poderão ser melhor compreendidos à medida que ela prossegue, havendo que ir realizando a respectiva análise e o respectivo balanço. Mas é já visível o forte poder de demarcação de campos que estes acontecimentos vêm exercendo. O massacre de Marikana entrou já na história da luta de classes como um dos episódios mais sangrentos e revoltantes de repressão sobre uma greve de trabalhadores, a qual é totalmente justa e legítima e merece o apoio de qualquer trabalhador informado e consciente. Os mineiros de Marikana e os demais trabalhadores das minas sul-africanas em luta destacam-se também no movimento operário internacional como um dos sectores mais combativos e audazes na luta contra o capital.

No plano interno português, os comunicados, primeiro da Intersindical e depois do PCP, sobre o massacre de Marikana e sobre a luta dos mineiros que o fez desencadear, exprime bem o poder de demarcação atrás referido. O PCP abstém-se de denunciar o massacre, que designa de “trágicos acontecimentos”, e limita-se a condenar “a violência ocorrida, nomeadamente (sic) das forças policiais”. Para além disso, o PCP reproduz a posição do sindicato ligado ao regime sul-africano, o NUM, de não apoiar a greve dos mineiros e de se preocupar apenas com o “divisionismo e a provocação”, numa alusão ao sindicato que, neste caso, se opõe àquele sindicato do regime. A Intersindical vai um pouco mais longe na denúncia da repressão policial, mas adopta a mesma posição do PCP no que diz respeito à luta dos trabalhadores e ao sindicato do regime, citando várias passagens dos textos dos provocadores da direcção do NUM.

Há que denunciar com firmeza estas posições do PCP e da Intersindical. Convicto de exprimir o sentir da maioria dos operários e trabalhadores portugueses, o PCTP/MRPP exprime o seu firme e total apoio à actual luta dos mineiros da África do Sul e condena veementemente o bárbaro massacre organizado e dirigido pelo governo da África do Sul, com a conivência completa das organizações sindicais sul-africanas que apoiam esse governo.

Viva a heróica luta dos mineiros sul-africanos!

Abaixo a criminosa repressão do governo da África do Sul sobre os trabalhadores em greve!